O ACORDO COLETIVO ESPECIAL (ACE) E A FLEXIBILIZAÇÃO
TRABALHISTA
Reportagem veiculada pela Agencia Estado (23/05/12)
informa de reunião envolvendo o presidente da Câmara dos Deputados (dep.Marco
Maia do PT/RS), diversas lideranças partidárias daquela casa e o Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC (SMABC). Na reunião o sindicato apresentou a sua proposta
de Anteprojeto de lei que muda a legislação trabalhista criando o Acordo
Coletivo Especial (ACE) e pede celeridade para aprovação do mesmo. O SMABC é um
dos sindicatos mais importantes do país, o que já basta para se levar a sério a
proposta apresentada. Se somarmos a isso o apoio anunciado da CUT, algumas
outras centrais sindicais e do próprio Presidente da Câmara à proposta temos
uma situação que exige uma pronta resposta de todos os que resistem à
flexibilização dos direitos dos trabalhadores.
A exposição de motivos do Anteprojeto de Lei que trata
do Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico (nome oficial da
proposta) critica a legislação trabalhista existente. Ela seria “extensa e detalhada, nem sempre adequada à
realidade dos trabalhadores e das empresas”, e necessitaria “atualização”. Acusa os “setores conservadores” de resistirem
contra as tentativas de “reforma no
sistema de relações de trabalho por meio do dialogo social e da negociação
tripartite”. E defende as mudanças contidas no Anteprojeto como sendo
necessárias para que o sindicato e empresas possam estabelecer acordos que
respondam às suas necessidades específicas com a “indispensável segurança jurídica”(os
trechos entre aspas foram retirados da cartilha sobre este tema elaborada pelo
SMABC).
Não se trata de coincidência apenas, o fato de os
argumentos serem tão parecidos com aqueles que embasaram a proposta de mudança
do artigo 618 da CLT (para que prevalecesse o negociado sobre o legislado) que
o governo FHC tentou aprovar no Congresso Nacional em seu segundo mandato. Ela
veio como reação à várias decisões judiciais e ações do Ministério Público do
Trabalho que anularam acordos coletivos feitos por sindicatos pelegos
(notadamente da Força Sindical) que lesavam direitos dos trabalhadores. Tratava
assim de dar “segurança jurídica” à
pilantragem praticada por estes sindicatos e empresas. A mesma segurança jurídica
buscada agora pelo SMABC (que naquele momento, junto com a CUT, rechaçou a
proposta do governo do PSDB).
O Anteprojeto apresentado agora tem o mesmo conteúdo
da proposta apresentada naquele momento pelo governo FHC. Se aprovado, trará à
nossa classe prejuízos da mesma ordem que traria aquela proposta, caso tivesse
sido aprovada naquele momento. Deve, portanto, ser veementemente rechaçado por
todos os trabalhadores e pelos sindicatos que tem compromisso com os seus
representados e não com as empresas.
O
Anteprojeto de Lei
Uma análise, ligeira que seja, do Anteprojeto
apresentado, permite ver claramente este seu objetivo. O artigo 1º estabelece
que “esta lei dispõe sobre a negociação
coletiva e o Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico”, e no
artigo 2º, inciso III, a lei considera “condição
específica de trabalho, aquela que, em decorrência de especificidade da empresa e da vontade dos trabalhadores justificam
adequação nas relações individuais e
coletivas de trabalho e na aplicação da
legislação trabalhista, observado o artigo 7º da Constituição” (grifos
meus). A partir daí vem encheção de lingüiça para dar um ar progressivo à
proposta.
Está nesta idéia – autorização para adequação na
aplicação da legislação trabalhista conforme especificidade da empresa (tucanês
para flexibilização) – o ponto central do projeto. O SMABC fundamenta toda a
argumentação em defesa dessa proposta na alegação de que a legislação atual “tolhe a autonomia dos trabalhadores e
empresários”, impedindo um “equilíbrio
mais consistente”. Chega a dizer que “onde
existe controle excessivo e regras engessadas, a liberdade morre” (cartilha do sindicato).
A interpretação otimista desta argumentação é que,
para o sindicato, a presença de uma legislação trabalhista ultrapassada
supostamente estaria se constituindo em obstáculo a que os trabalhadores
conquistassem avanços em suas relações de trabalho. Só que isto não se sustenta,
e por um motivo muito simples: a legislação trabalhista em vigor não impede
(nunca impediu) que fossem firmados acordos coletivos com condições mais
favoráveis aos trabalhadores do que aquelas estabelecidas na lei. O que não
pode é firmar acordos com condições piores do que as previstas na legislação
(em alguns poucos casos, é bom que se diga, pois a legislação trabalhista já é
excessivamente flexível).
Ficamos então com a única interpretação razoável: a de
que o real objetivo do anteprojeto é garantir mais espaço (segurança jurídica)
para a flexibilização dos direitos dos trabalhadores. Essa interpretação é
amplamente corroborada pelo exemplo apontado pela cartilha, como precursor do
tipo de relações de trabalho pretendido com o ACE: o das Câmaras Setoriais do
setor Automotivo, constituídas entre as montadoras e o SMABC no início dos anos
90 do século passado e que tiveram, de acordo com a cartilha já citada,
resultados “espetaculares”. Nestes acordos, para quem não se lembra, o governo
entrou com a sua parte (redução de impostos e outros benefícios para estas
empresas); os trabalhadores, além de aceitarem passivamente uma ampla
reestruturação do processo de produção das empresas, abriram mão de benefícios
e direitos. E as empresas...bem, vejamos os números.
No ano de 1992 (ano em que se assinou o primeiro
acordo das Câmaras Setoriais), as montadoras de veículos em nosso país
produziram 1.017.550 unidades empregando 105.664 trabalhadores, com faturamento
de 30,363 bilhões de dólares. Dez anos depois, em 2002, estas empresas
fabricaram 1.700.146 veículos, empregando 81.737 trabalhadores e faturamento de 41,894 bilhões de dólares (os dados são do anuário da ANFAVEA – Associação Nacional de Fabricantes
de Veículos Automotores).
Como se vê, o grande argumento do Sindicato, de que os
trabalhadores manteriam seu bem maior - o posto de trabalho - era apenas mais
uma falácia. O numero de trabalhadores nestas empresas no ano (1992) da
assinatura do primeiro acordo (que deu base aos demais), era 105.664. Nos anos
seguintes foram assinados vários acordos no âmbito das Câmaras Setoriais que
retiraram direitos e benefícios dos trabalhadores – surgiu aqui o famigerado
banco de horas, que depois evoluiu para banco de dias. Em que pese as enormes
concessões feitas pelos trabalhadores, passados 10 anos, em 2002, o número de
empregos no setor havia caído para 81.737 (mesmo com o aumento da produção de 1
milhão para 1,7 milhão de veículos/ano).
A flexibilização de direitos e eliminação de
benefícios continuam até hoje. A
sobrecarga de exploração sobre os trabalhadores se vê claramente na evolução do
índice de produtividade alcançado pelas empresas com as mudanças inauguradas
com as Câmaras Setoriais: em 1980 as empresas produziam 7,8 veículos por
trabalhador por ano enquanto que em 1992 (quando foi assinado o primeiro acordo
das Câmaras Setoriais) eram 9,6 veículos por trabalhador/ano. Dez anos depois,
em 2002, saltou para 20,8 veículos por trabalhador/ano. E isso não é fruto apenas de inovações
tecnológicas. A explicação deste fenômeno passa também pela aplicação do
critério da multifuncionalidade e de um aumento infernal no ritmo de trabalho. Em
2010 as empresas conseguem atingir a marca de 28,7 veículos por trabalhador/ano,
e um faturamento de 83,586 bilhões de dólares. Ou seja, para as empresas os
resultados dos acordos das Câmaras Setoriais foram realmente “espetaculares”.
A
importância desta discussão nos dias de hoje
Uma das conseqüências da crise na economia capitalista
que se inicia em 2007 (quando se identifica com mais clareza uma queda na taxa
de lucros das grandes corporações capitalistas) é justamente a reestruturação
do setor automotivo, em meio a uma acirrada disputa do mercado pelos principais
fabricantes do mundo. Uma das caras desta reestruturação é o fechamento de
fábricas (queima de capital) como vimos no caso da GM nos EUA (a empresa fechou
18 fábricas nos Estados Unidos no auge da crise que viveu entre 2008 e 2010).
Mas outra faceta, bem mais generalizada, destas políticas de reestruturação é o
constante esforço para redução de custos. E a eliminação ou redução de
benefícios e direitos dos trabalhadores é o caminho mais comum de redução de
custos buscado pelas empresas. Trata-se de uma política generalizada das
empresas, não só das montadoras de veículos.
As várias tentativas de Reforma da legislação
trabalhista (que ora se denomina de reforma trabalhista, ora de reforma
sindical) tiveram e têm justamente este objetivo: criar condições para uma nova
leva de flexibilização, redução ou eliminação de direitos e benefícios dos
trabalhadores, atendendo à necessidade das empresas. A PEC 369 (da Reforma
Sindical) apresentada no Congresso Nacional em fevereiro de 2005 pelo governo
Lula, pela CUT e pela Força Sindical, objetivava criar estas condições. Mas
está ainda parada na Câmara dos Deputados com poucas chances de aprovação no
curto prazo. O SMABC quer, com o ACE, criar as condições para a flexibilização
necessária da legislação trabalhista através da negociação coletiva, de forma a
que possa fazer concessões às políticas de redução de custos para as montadoras
e outras empresas estabelecidas no ABC
paulista. A CUT, ao apoiar esta proposta, chancela esta política para todo o
país, com resultados trágicos para os trabalhadores, caso consigam aprovar este
Anteprojeto de Lei.
As mudanças
na legislação não podem ser para pior
Rechaçar as mudanças propostas neste Anteprojeto de
Lei não implica considerar que a legislação trabalhista vigente é suficiente em
termos da defesa dos direitos dos trabalhadores. Longe disso. Para que haja um
pouco mais de liberdade de atuação sindical dos trabalhadores, como reclama a
cartilha elaborada pelo sindicato em defesa do ACE, de forma a que estes possam
avançar em mais conquistas nas relações de trabalho, são necessárias sim,
muitas mudanças. Mas não mudanças no sentido da flexibilização.
Aprovada esta proposta
estariam legalizados acordos que, por exemplo, permitissem a divisão das férias em mais de dois períodos; o pagamento parcelado do
13.º salário, até mesmo em parcelas mensais; a ampliação do banco de horas sem
limites; contratação temporária e terceirização dentro das empresas sem nenhum
limite; além de outras manobras. O sindicato poderia argumentar que estes
acordos dependeriam de aprovação dos trabalhadores. Verdade. Mas quem não
conhece o poder de chantagem das empresas sobre seus empregados, em particular
nos momentos de crise econômica? Qual dirigente sindical no setor privado nunca
se enfrentou com uma situação em que a empresa propunha “reduzir salário ou
demitir trabalhadores”? Como pode o trabalhador decidir livremente nesta
situação?
Mesmo a aparente vantagem contida na proposta – a
implantação de organização de base ligada ao sindicato nas empresas que
quisessem realizar um acordo desta natureza – mostra-se uma mera cortina de
fumaça. Trata-se de organização de base subordinada ao sindicato (e não aos
trabalhadores da empresa) e ainda por cima vem condicionada à negociação de um
acordo que rebaixa direitos legais dos trabalhadores. Não é para isso que
lutamos há anos pelo direito de organização dos trabalhadores nos locais de
trabalho.
Alguns
desafios que poderiam ser abraçados por todos os sindicatos
Um exemplo que podemos apontar é a necessidade do
estabelecimento em lei da proteção contra a demissão imotivada (adoção da
convenção 158 da OIT), sem o que é pura falácia falar em liberdade sindical ou
liberdade de negociação. Enquanto não houver a proteção contra demissão
imotivada, apenas se poderá falar em liberdade de atuação sindical ou de
negociação para os dirigentes sindicais, mas não para os trabalhadores. Outro
exemplo é a necessidade de se assegurar proteção legal ao direito de
organização no local de trabalho, do qual pelo menos os trabalhadores da
iniciativa privada estão excluídos.
Estas são duas medidas em torno às quais vale a pena
fazer uma grande campanha de pressão pela sua aprovação no Congresso Nacional.
A este desafio deveriam lançar-se todas as entidades sindicais comprometidas
com os trabalhadores: denunciar a proposta apresentada pelo SMABC e pressionar
contra a sua aprovação no Congresso Nacional, ao mesmo tempo em que exigimos
dos parlamentares a aprovação de leis que realmente beneficiem a nossa classe,
como a proteção contra a demissão imotivada e a proteção do direito de
organização no local de trabalho.
São Paulo, 17 de junho de 2012
Zé Maria,
diretor da Federação Democrática dos Metalúrgicos de Minas Gerais e da
Secretaria Executiva Nacional da CSP-Conlutas
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